finalmente provado: a eficiência de capturar as vespas asiáticas fundadoras

Entre a comunidade científica francesa, apicultores e restantes cidadãos tem havido um debate, com longos anos, acerca da eficiência no controle da proliferação da vespa asiática (Vespa velutina nigrithorax), em territórios em que ela se encontra já estabelecida, por meio das armadilhas de captura das fundadoras após a sua saída de hibernação.

Num artigo de divulgação científica, publicado em abril deste ano, surgem finalmente dados científicos que dão suporte à tese de que uma rede adequada de armadilhas devidamente selectivas para a captura de fundadoras desta espécie exótica diminui de forma significativa a proliferação de seus ninhos. Em baixo traduzo alguns excertos do artigo.

Ninho de vespas asiáticas (Vespa velutina nigrithorax).

“Embora utilizado no campo por algumas redes locais de controle, esse método de controle nunca foi oficialmente recomendado porque os estudos científicos existentes sobre o assunto não mostraram, até então, qualquer efetividade real. Além disso, destacaram um impacto sobre os insetos não visados ​​por esse método, devido à baixa seletividade das armadilhas e iscas disponíveis. O Ministério da Agricultura mandatou o ITSAP-Institut de l’Abeille e o Museu Nacional de História Natural (MNHN) completar esses dados e permitir que os efeitos deste método de controle sejam medidos, numa escala sem precedentes.

Para a realização deste estudo, contámos com dados da ciência cidadã, combinados com os obtidos por meio de um protocolo rigoroso. Esses dados incluem a contagem e localização dos ninhos de vespas asiáticas, as armadilhas usadas e o número de fundadoras capturadas. Estes censos foram repetidos ao longo de quatro anos consecutivos (2016-2019) e realizados em três departamentos (Morbihan, Vendée e Pyrénées-Atlantiques).

As relações estatísticas entre a densidade de ninhos e o esforço de captura foram analisadas através de estudos espaço-temporais realizados pela unidade BioSP (BioStatistics and Spatial Processes) do INRAE ​​d’Avignon.

Eficaz, desde que as velutinas sejam o alvo
Como esperado, as análises revelaram a eficiência da instalação de armadilhas preferencialmente em locais onde houve ninhos no ano anterior. A análise da dinâmica espaço-temporal da captura mostrou que a presença de armadilhas é acompanhada por uma diminuição no número de ninhos ao longo do tempo. O principal fator para essa redução é a presença localizada de armadilhas e não a quantidade de armadilhas ou fundadoras capturadas. O efeito desaparece quando se afasta as armadilhas para lá dos 400 m. O efeito sobre os ninhos é tanto mais importante quanto a captura é repetida em vários anos sucessivos. Por exemplo, aplicando as armadilhas ao longo de quatro anos em vez de três, pode multiplicar por cerca de 2 o seu efeito na redução do número de ninhos.

Em contraste, colocar várias armadilhas num mesmo lugar não tem um impacto significativo. Isso parece comprovar que a eficácia deste método depende do estabelecimento de uma malha densa e regular de armadilhas, centrada na área a ser protegida, respeitando um espaçamento de algumas centenas de metros entre dois dispositivos. Na ausência de armadilhas e iscas seletivas, a captura de primavera deve ser realizada em torno dos apiários que experimentaram uma mortalidade excessiva de colónias atribuída ao vespão asiático no inverno anterior.

Não se trata, portanto, da aplicação de armadilhas generalizadas em todos os territórios, mas sim de armadilhas direccionadas para proteger os apiários afectados. Os dados disponíveis sobre a seletividade das armadilhas indicam que deve ser proibido o uso de armadilhas com garrafas, iscas líquidas e favorecido o uso de armadilhas com cestos com cones de entrada do tipo “JabeProde”.

( fonte: http://blog-itsap.fr/efficacite-piegeage-fondatrices-frelon-asiatique/?fbclid=IwAR0RzYzEVsUsLkoraVQBJQsXSHNj-l7IHUJEeAnxbd-Xwuz8wJxnaXNVBJE )

Notas: Sobre o Jabeprode (julgo ter sido o primeiro a escrever em Portugal sobre este dispositivo) escrevi recentemente: “O JABEPRODE é um dispositivo que poderia facilmente ser produzido industrialmente, numa qualquer empresa de moldes, assim as entidades oficiais camarárias e outras patrocinassem o seu fabrico, promovessem o que de melhor se vai fazendo nesta área, e as entregassem gratuitamente aos apicultores. Estou certo que muitos de nós iriam aderir ao projecto. Uma vez mais os apicultores desejam ser referência na protecção da entomofauna e biodiversidade e contribuir para a diminuição da tremenda mortandade que as V. velutinas e as armadilhas não selectivas, colocadas um pouco por todo o lado e ao longo de todo o ano, causam em insectos polinizadores não-alvo.”

Sobre a planificação de uma rede de colocação de armadilhas, deve ser um trabalho coordenado pelos nossos representantes locais (câmaras e seus serviços de protecção civil). A sua execução poderá contar com munícipes que formarão uma rede de voluntários, apicultores e demais, para a realização de algumas das tarefas no terreno, mas sempre com a supervisão e responsabilidade das câmaras e seus serviços de protecção civil na indicação dos locais preferenciais para a instalação das armadilhas, assim como o fornecimento de armadilhas efectivamente selectivas. Está na altura de dar este passo em frente, com vista a uma luta planeada, coordenada, eficiente e selectiva.

localização de ninhos de V. velutina: comparação de técnicas de rastreamento

Em baixo deixo a tradução de excertos de um artigo recente, publicado por uma equipa de investigadores italianos, em torno das vantagens e limites na utilização do radar harmónico para rastreamento do voo de V. velutinas no seu trajecto de e para o seu ninho, e comparação desta técnica com duas outras técnicas de rastreamento: a) rastreamento visual com triangulação; b) rastreamento tecnológico com utilização de radio-telemetria.

No cenário da invasão de Maiorca pela V. velutina, os investigadores foram capazes de detectar e remover 30 ninhos de V. velutina nos anos 2015–2017 por rastreamento visual e triangulação de direções de voo; esta atividade exigia uma média de 19,2 ± 18,9 dias de trabalho por ninho (mín = 0 dias, máx = 63 dias). Com o rastreamento por radar harmónico, fomos capazes de localizar ninhos na Itália com uma média de 2,5 ± 1,0 dias úteis (min = 2 dias, máx = 5 dias) e 11 ± 4 h de uso efetivo do radar. Com a técnica de rádio- telemetria os investigadores conseguiram detectar ninhos de V. velutina em 92 ± 37 min. Porém, um aspecto que deve ser levado em consideração para a utilização desta última técnica: o peso das etiquetas/tags, que pode variar de 150 a 312 mg (10–21 vezes mais pesado do que a etiqueta/tag usada para a técnica de radar harmónico) ou mais. Este peso maior pode afetar a capacidade de voo das vespas [só os indivíduos mais fortes conseguem voar com estes tags], principalmente na primavera ou início do verão, quando o peso das operárias de V. velutina é menor.

Vespas marcadas com tags executando seu comportamento predatório usual. V. velutinas marcadas pairando em frente de colónias de abelhas para atacar abelhas forrageiras (a, b). Uma vespa marcada que está despedaçando uma abelha para recolher o tórax (parte mais energética de sua presa), que será trazida de volta ao ninho para alimentar a ninhada (c). Duas vespas marcadas à entrada do ninho (d).

Outro aspecto que deve ser considerado na comparação das técnicas de rastreamento são os custos associados (pessoal e equipamentos). Todas as técnicas acima mencionadas poderiam ser facilmente realizadas por uma equipe de duas pessoas treinadas, embora a técnica de rastreamento visual exija, em geral, um maior número de dias de trabalho e, portanto, maiores custos de pessoal. No que diz respeito às técnicas tecnológicas, os custos do equipamento inicial são mais elevados para o rastreio por radar harmónico (cerca de 100 mil euros por unidade). Por outro lado, o rastreamento por rádio-telemetria tem custos iniciais de equipamento mais baixos do que o rastreamento por radar harmónico, mas um custo mais alto associado às etiquetas/tags para rastreamento de insetos.

Portanto, a seleção de uma técnica de rastreamento para localização de ninhos de V. velutina requer uma análise das vantagens e limites em relação aos recursos disponíveis, as características das paisagens e a urgência de encontrar os ninhos em relação ao cenário invasor. O uso de câmaras de imagem térmica, em associação com a técnica de rastreamento selecionada, também pode facilitar a localização do ninho uma vez que a área de presença tenha sido definida.

Nota suplementar: Os ninhos de V. velutina detectados com o rastreamento por radar harmónico foram localizados a uma distância média de 395 ± 208 m (M ± SD, n = 10) dos apiários onde as vespas atacavam as abelhas (min = 72 m, max = 786 m). Estes dados são consistentes com informações anteriores sobre a possível faixa de forrageamento de V. velutina, que está provavelmente num raio ao redor do ninho de 500-700 m (ver esta publicação, de outubro de 2018).

fonte: https://www.nature.com/articles/s41598-021-91541-4#Tab1

como fazer uma armadilha mais selectiva para apanhar vespas velutinas fundadoras

Sabendo que a grande maioria das armadilhas utilizadas para captura de vespas velutinas fundadoras não são suficientemente selectivas, há que fazer melhor. Nesta publicação, de março de 2019, apresentei uma armadilha muito selectiva. O JABEPRODE é um dispositivo que poderia facilmente ser produzido industrialmente, numa qualquer empresa de moldes, assim as entidades oficiais camarárias e outras patrocinassem o seu fabrico, promovessem o que de melhor se vai fazendo nesta área, e as entregassem gratuitamente aos apicultores. Estou certo que muitos de nós iriam aderir ao projecto. Uma vez mais os apicultores desejam ser referência na protecção da entomofauna e biodiversidade e contribuir para a diminuição da tremenda mortandade que as V. velutinas e as armadilhas não selectivas, colocadas um pouco por todo o lado e ao longo de todo o ano, causam em insectos polinizadores não-alvo. Enquanto tal não acontece, surgem propostas de há uns anos a esta parte com modelos para a construção de armadilhas mais selectivas.

Com esta visão em mente apresento nesta publicação um modelo de armadilha mais selectiva, que poderá ser feita por cada um de nós com os instrumentos e equipamentos habituais.

O esquema em baixo dá-nos uma visão geral da armadilha que podemos fazer para apanhar mais selectivamente as velutinas fundadoras.

Material necessário:

  • 2 garrafas de plástico;
  • 2 paus de gelado;
  • 1 pedaço de esponja redondo;
  • Faca ou broca, régua;
  • Cerveja, mel, xarope fermentado, … .

Passos para construção:
1 – Corte o topo das 2 garrafas de forma a criar dois funis.
2 – Molhe a esponja com o isco (cerveja, mel e xarope fermentado, misturados) e insira-a numa das garrafas.
3 – Retire a tampa de um dos funis e coloque-a na garrafa.
4 – Fure os orifícios de entrada (no topo A Ø 9mm) e na saída para os insetos menores (fundo B Ø 5,5mm) e coloque os dois paus de gelado (atuam como ‘pista’ de pouso ou descolagem).
5 – Fure o segundo funil (C Ø 10mm) e coloque-o na garrafa, ele servirá de tampa. Certifique-se de que o orifício (C) está alinhado com o orifício de entrada (A). Girando a tampa, você pode abrir ou fechar a entrada (A).
6 – A armadilha está pronta!

Para eliminar as rainhas fundadoras aprisionadas, coloque a armadilha fechada durante cerca de 1 hora num congelador para que elas entrem no estado dormente. Abra depois a armadilha e mate as rainhas com uma tesoura, cortando-as ou esmagando-as.

Dicas e conselhos de uso:

  • Instale a armadilha assim que as temperaturas atingirem + de 13 ° Celsius
  • Coloque a armadilha perto de um monte de lenha, um ponto de água e/ou áreas de floração (flores com alto teor de néctar onde as abelhas recolhem néctar e pólen como, por exemplo, as camélias de inverno ricas em néctar).
  • Verifique regularmente as armadilhas para as recarregar.
  • Remova todas as armadilhas até 1 de maio. Mais ou menos depois desta data as rainhas ficam no ninho a partir do nascimento da primeira nova geração de vespas obreiras e nunca mais saem dele. Limpe a armadilha e a esponja e guarde até fevereiro próximo.

Notas sobre os aspectos selectivos destas armadilhas:

  • permite atrair e capturar as velutinas fundadoras, mas impede a entrada de outros grandes insetos e permite que insetos menores saiam delas;
    a armadilha está equipada com um dispositivo de limitação de tamanho na sua entrada (A Ø9mm) para que abelhões, vespões nativos e borboletas não possam entrar na armadilha.
  • existe um dispositivo de limitação de tamanho na saída (B Ø5,5mm) para impedir que as rainhas velutina saiam, e deixam os insetos menores saírem;
  • um pedaço de esponja circular colocado no fundo da garrafa, embebido até à saturação com um isco habitual (cerveja+ mel ou cidra + xarope fermentado ou líquido de cera derretida) permite maior evaporação e maior alcance dos aromas atractivos assim que o primeiros raios de sol aparecem. Essa esponja também evita que insetos menores se afoguem, caso tenham entrado na armadilha;
  • manter as rainhas vivas no interior contribui para atrair mais vespas por via das feromonas que libertam enquanto aprisionadas;
  • uma tampa giratória com abertura (C Ø10mm) permitirá fechar a entrada superior, prendendo as rainhas enquanto se aguarda para a eliminar.

Enquanto apicultores devemos fazer tudo o que nos for possível para evitar que outros insectos não-alvo sejam eliminados em quantidades massivas pela utilização de armadilhas não selectivas. Eliminemos apenas as velutinas fundadoras e a Mãe Natureza agradecerá por isso!

fonte: https://www.planfor.co.uk/garden-advice,selective-trap-for-asian-hornet.html

nem tudo que brilha é ouro: os outros insetos que caem nas armadilhas “específicas” da vespa velutina

Neste artigo, All That Glitters Is Not Gold: The Other Insects That Fall into the Asian Yellow-Legged Hornet Vespa velutina ‘Specific’ Traps, os autores espanhóis confirmam o que tenho lido de há uns anos a esta parte noutros artigos publicados por investigadores franceses: as armadilhas para captura de vespas velutinas não são específicas o suficiente e capturam uma grande quantidade de outros polinizadores importantes nos serviços do ecossistema.

Surpreendentemente, para mim pelo menos, foram encontrados 5 ácaros do género Varroa em cinco dos 286 espécimes Vespa velutina examinados (um ácaro por espécime de V. velutina). A taxa de prevalência do parasita Varroa em V. velutina foi de 0,017 (1,75%). Em todos os casos, os ácaros foram encontrados agarrados à parte ventral lateral do abdómen de cada V. velutina.

Em baixo fica o gráfico que os autores construíram sobre a percentagem de mortalidade causada em insectos benéficos (a azul) e insectos prejudiciais (a vermelho) aos serviços do ecossistema que nos são indispensáveis, em resultado das armadilhas utilizadas para apanhar vespas velutinas, na amostra estudada.

Nota: naturalmente sei que os meus leitores terão a inteligência e o bom senso de não crucificarem o mensageiro em razão das notícias não serem confortáveis. Decidi publicar por duas razões: 1) pela primeira vez vejo uma equipa de investigadores não-franceses a confirmarem o que há anos vem sendo dito por equipas francesas; 2) o facto de se ter encontrado varroas alojadas no corpo de umas poucas V. velutinas. Numa publicação que se seguirá trarei melhores notícias.

o programa apícola francês ou je suis français

Como em Portugal, o setor apícola francês beneficia de apoio financeiro no âmbito de um programa europeu, regido pelo regulamento (UE) 1308/2013 (OCM única), regulamentos (UE) 2015/1366 e 2015/1368 e pela decisão do Diretor-Geral da FranceAgriMer INTV SANAEI 2019-17.

Como o programa apícola português, definido para um triénio, o programa apícola francês prevê ajudas de carácter colectivo, que têm como objectivo a implementação de ações que visem a melhoria da produção e comercialização dos produtos apícolas:

  • assistência técnica e formação;
  • a luta contra agressores e doenças da colmeia;
  • pesquisa aplicada;
  • análises de mel;
  • melhoria da qualidade do produto.

Contudo, ao contrário de programa apícola português, o programa francês prevê ajudas directas aos apicultores nestas duas rubricas:

  • racionalização da transumância;
  • ajuda para manter e reforçar o efectivo apícola.

Por exemplo, os apoios à transumância têm como objetivo financiar equipamentos para modernizar os apiários e reduzir a árdua tarefa inerente às operações de transumância, sendo investimentos elegíveis para apoio os abaixo descriminados:

  • Grua;
  • Empilhadores todo terreno de 4 rodas ou esteira;
  • Reboque;
  • Plataforma elevatória;
  • Layout da plataforma do veículo;
  • Paletes;
  • Moto-roçadora ou roçadora com rodas;
  • Preparação de locais de transumância;
  • Balanças eletrónicas controláveis ​​remotamente.

As taxas de ajuda podem atingir 40% no máximo do montante, excluindo impostos sobre o investimento elegível efetivamente realizado. O tecto de investimento está definido a três anos:

  • Até 150 colmeias declaradas: € 5.000 sem impostos;
  • Mais de 151 colmeias declaradas: € 23.000 sem impostos.

Por cá, o estado paternalista, com pelo menos 95 anos — 48 antes do 25 de abril e 47 anos depois do 25 de abril—, continua a achar que os cidadãos não sabem onde, como e quando investir e aplicar o dinheiro dos apoios. E vai fazendo cada vez mais o papel de um pai esclorosado e demente!

por detrás deste blog estás tu, meu filho.

Por detrás deste blog estás tu, meu filho. Foste tu que, com a tua mestria e dedicação, me permitiste materializar esta vontade de escrever umas linhas sobre apicultura. És tu que, fora do palco, me ajudas a ultrapassar prontamente alguns problemas técnicos que vão surgindo a espaços. Sem ti, este blog seria uma frequente dor de cabeça, um aborrecimento, um peso…

Sobre ti posso dizer-te duas ou três coisas que considero essenciais neste momento em que as escrevo. 

A minha vida e o meu sentir mudaram no momento em que nasceste. Logo ali, naquele momento único e irrepetível, senti uma mudança interior. Foi logo ali que senti que o jogo da minha vida tinha passado para outro patamar, que a responsabilidade agora tinha entrado noutro campeonato. Agora a missão era criar-te. Missão mais exigente e arriscada, mas mais nobre e cheia de significado. A minha vida ganhou outra tração. 

Sobre ti, posso ainda dizer que consegues fazer praticamente tudo em que te empenhas verdadeiramente. Pouco ou nada te atemoriza, pouco ou nada te tolhe. Tens a inteligência e as ganas para seguir o TEU caminho. Tens a coragem e o instinto para cumprir o teu destino, traçando-o e construindo-o, não te submetendo a ele. Na tua área de trabalho, muito específica e inovadora, estás entre os melhores do mundo. Vivendo em Portugal, és genuinamente um cidadão do mundo. 

Dizer apenas mais isto… o teu coração é equilibrado pela tua razão, e tua razão não é sem teu coração. O que fazes faze-lo de forma apaixonada, planeada, devidamente ponderada, quase até à tua exaustão, e faze-lo porque o QUERES fazer assim. O teu combustível é a paixão que te obrigas a colocar em quase tudo o que fazes! Vives o teu dia-a-dia numa dimensão volitiva, de desejo intenso, de vontade focada, puxado pelos teus motivadores intrínsecos e fluindo, como o voo de uma abelha num campo florido, entre os teus motivadores extrínsecos. 

Como te AMO e como me sinto orgulhoso em ser teu pai! Um beijo, daqueles que os pais dão, meu filho!

Gostas de música e és muito eclético nas tuas escolhas, o que me revela bem a tua complexidade interior. Partilho algumas das que gostas: 

com borges e calvino

Referi na primeira publicação que este blog surge, entre outras, pela razão do meu prazer pela escrita. E este prazer está associado a um enamoramento, o enamoramento pela literatura.

E ao escrever, mesmo num blog de apicultura eminentemente técnico, aqui e ali não podemos deixar de expressar, desejando até expressar, procurando até expressar, um certo traço de escrita presente nos autores que tanto amamos ler.

Borges e Calvino

Os dois excertos em baixo, cuja escolha não é despropositada, como se fosse possível fazer escolhas despropositadas, são de Jorge Luís Borges, um velho companheiro desde os meus 16 anos, e de Italo Calvino, um escritor que conhecendo como se conhecem os vizinhos numa cidade, só muito recentemente lhe abri a soleira da minha porta, bebi um copo com ele, e desde essa altura se tornou um companheiro para a/da vida.

Que os mundos maravilhosos das abelhas e da literatura nos continuem a encantar.

OS DOIS REIS E OS DOIS LABIRINTOS (1), de Jorge Luís Borges

Contam os homens dignos de fé (porém Alá sabe mais) que nos primeiros dias houve um rei das ilhas da Babilônia que reuniu arquitetos e magos e ordenou-lhes a construção de labirinto tão surpreendente e sutil que os varões mais prudentes não se aventuravam a entrar, e os que entravam se perdiam. Essa obra era um escândalo, pois a confusão e a maravilha são operações próprias de Deus e não dos homens. Com o correr do tempo, veio a sua corte um rei dos árabes, e o rei da Babilônia (para zombar da simplicidade de seu hóspede) fez com que ele penetrasse no labirinto, onde vagueou humilhado e confuso até o fim da tarde. Implorou então o socorro divino e deu com a porta. Seus lábios não proferiram queixa nenhuma, mas disse ao rei da Babilônia que ele tinha na Arábia outro labirinto e, se Deus quisesse, lho daria a conhecer algum dia. Depois regressou à Arábia, juntou seus capitães e alcaides e arrasou os reinos da Babilônia com tão venturosa sorte que derrubou seus castelos, dizimou sua gente e fez prisioneiro o próprio rei. Amarrou-o sobre um camelo veloz e levou-o para o deserto. Cavalgaram três dias, e lhe disse: “Oh, rei do tempo e substância e símbolo do século, na Babilônia, quiseste que me perdesse num labirinto de bronze com muitas escadas, portas e muros; agora o Poderoso achou por bem que eu te mostre o meu, onde não há escadas a subir, nem portas a forçar, nem cansativas galerias a percorrer, nem muros que te vedem os passos”.

Em seguida, desatou-lhes as amarras e o abandonou no meio do deserto, onde morreu de fome e de sede. A glória esteja com Aquele que não morre.

(1) Esta é a história que o reitor comentou do púlpito. Ver em Abenjacan, o Bokari, morto no seu labirinto.

AS CIDADES E O DESEJO, de Italo Calvino

A três dias de distância, caminhando em direção ao sul, encontra-se Anastácia, cidade banhada por canais concêntricos e sobrevoada por pipas. Eu deveria enumerar as mercadorias que aqui se compram a preços vantajosos: ágata ônix crisópraso e outras variedades de calcedônia; deveria louvar a carne do faisão dourado que aqui se cozinha na lenha seca da cerejeira e se salpica com muito orégano; falar das mulheres que vi tomar banho no tanque de um jardim e que às vezes convidam — diz- -se — o viajante a despir-se com elas e persegui-las dentro da água. Mas com essas notícias não falaria da verdadeira essência da cidade: porque, enquanto a descrição de Anastácia desperta uma série de desejos que deverão ser reprimidos, quem se encontra uma manhã no centro de Anastácia será circundado por desejos que se despertam simultaneamente. A cidade aparece como um todo no qual nenhum desejo é desperdiçado e do qual você faz parte, e, uma vez que aqui se goza tudo o que não se goza em outros lugares, não resta nada além de residir nesse desejo e se satisfazer. Anastácia, cidade enganosa, tem um poder, que às vezes se diz maligno e outras vezes benigno: se você trabalha oito horas por dia como minerador de ágatas ônix crisóprasos, a fadiga que dá forma aos seus desejos toma dos desejos a sua forma, e você acha que está se divertindo em Anastácia quando não passa de seu escravo.

Os dois reis e os dois labirintos, in O Aleph; As cidades e o desejo, in As cidades invisíveis

a apicultura enquanto arte

Talvez por estar no ramo, encontro na apicultura uma dimensão artística que me passa despercebida noutros ramos da agro-pecuária. Que me perdoem alguns se estiver a ser injusto e precipitado, mas fazer a apicultura é diferente de semear batatas. Uma alma poética poderá vir a ser apicultor, dificilmente será um produtor de batatas. Ninguém é melhor que ninguém, apenas são diferentes as suas naturezas.

A apicultura enquanto expressão de beleza.

Enquanto homem que vive a sua vida em várias dimensões, os leitores mais atentos já terão dado conta da minha especial preferência por uma forma de arte: a música. Sempre me acompanhou, desde que me lembro.

Era ainda um jovem e fundei uma empresa promotora de concertos. Juntamente com a minha mulher e o meu amigo Gonçalo Barros fundámos a NAO — Novas Audições Objectivas — que trouxe a Portugal (Coimbra, Lisboa, Porto, Almada e Montemor-o-Velho) bandas estrangeiras acompanhadas frequentemente de bandas nacionais na primeira parte. Talvez entre os leitores deste blog se encontre alguém que tenha visto algum concerto promovido pela NAO — o mundo é pequeno, não é?

Sejam poetas sendo apicultores!