Como sabemos, a poliandria, a panmixia e o sistema haplodiploide conduzem a uma elevada diversidade genética dentro do enxame. O enxame é a soma de diversas sub-famílias de abelhas de diferentes linhas paternas mais ou menos aproximadas do ponto de vista genético. Esta diversidade traduz-se em ganhos de adaptabilidade e performance dos enxames face aos desafios ambientais. Contudo, esta diversidade introduz dificuldades na selecção de traços/comportamentos desejáveis quando os critérios de escolha de que dispomos estão limitados à observação do comportamento da colónia como um todo, isto é, quando a selecção é feita ao nível da colónia. Quando seleccionamos esta ou aquela colónia porque gostamos do seu comportamento X ou Y, quer para nos dar larvas para o translarve, quer para nos dar zângãos para saturar uma zona de congregação, partimos do pressuposto de que esse comportamento que desejamos selecionar está igualmente presente na herança genética de todos os indivíduos daquela colónia. Temos fé que qualquer zângão ou qualquer larva escolhida para futura rainha transporta consigo, na sua bagagem genética, esse comportamento em potência. Ora não é assim tão simples nem tão linear. Sabemos hoje que a proximidade genética entre indivíduos da mesma colónia pode ser muito baixa. Por exemplo, entre duas ou mais larvas escolhidas para translarve de uma colónia seleccionada a proximidade genética ronda os 0,15, isto para uma rainha que acasalou com 12 zângãos (a escala utilizada vai de 0 a 1, em que zero é nenhuma proximidade genética e 1 é proximidade genética total). A proximidade genética das obreiras com os zângãos filhos de uma mesma rainha é de 0,25. Fica claro porque razão selecionar ao nível da colónia pode provocar resultados tão diferentes nas colónias filhas, umas com o comportamento que desejamos e outras com pouco ou nada desse comportamento almejado.
Estes dados estão incluídos num estudo a que acedi e como o achei muito interessante e pedagógico decidi traduzir um pequeno excerto.
“Colónias com níveis mais altos de diversidade genética entre as operárias, resultado de maior número de acasalamentos, são melhor sucedidas na regulação da temperatura (Jones et al., 2004), são mais resistentes a doenças (Palmer e Oldroyd, 2003; Seeley e Tarpy, 2007) e mostram melhor eficiência de forrageamento (Mattila et al., 2008), armazenamento de alimentos e crescimento da colónia (Oldroyd et al., 1992b; Mattila e Seeley, 2007).
Acredita-se que o aumento do desempenho seja resultado de diferenças geneticamente influenciadas na propensão das operárias para realizar tarefas específicas (revisto em Beshers e Fewell, 2001; Myerscough e Oldroyd, 2004; Oldroyd e Fewell, 2007). A variação nas propensões das operárias para realizar uma tarefa significa que, para um certo nível de estímulo para realizar uma tarefa, apenas um subconjunto particular de operárias se envolverá nessa tarefa. Esta modulação do número de operárias que executam um determinado comportamento particular permite uma alocação mais eficiente de operárias às tarefas (Myerscough e Oldroyd, 2004; Graham et al., 2006). Operárias com limiar suficientemente baixo para uma tarefa podem até se tornar especialistas, a ponto de retardar sua maturação e progressão para outras tarefas da colónia (Arathi et al., 2000; Beshers e Fewell, 2001).
Algumas tarefas, como comportamento higiénico e defesa da colónia, são frequentemente realizadas por operárias de um pequeno subconjunto do número total de linhas paternas das operárias (Arathi et al., 2000; Hunt et al., 2003). Assim, quando as rainhas são escolhidas com base no fenótipo da colónia [isto é, com base no comportamento observável da colónia], elas podem não ser das linhas paternas que contribuem para a característica desejada. Populações reprodutoras pequenas, portanto, correm o risco de perder alelos desejáveis mais raros antes que eles se fixem/predominem na população. Como a seleção continuada numa população fechada aumenta a homogeneidade genética, o desempenho da colónia decorrente da diversidade genética de linhas paternas diminuirá, reduzindo os ganhos obtidos pela seleção.”
fonte: https://www.sciencedirect.com/topics/agricultural-and-biological-sciences/queen-rearing
As abelhas melíferas são dos animais domésticos sujeitos a selecção para o incremento de determinadas características, uma das espécies mais complicadas. Contudo e talvez pela complexidade inerente à sua melhoria (do ponto de vista pecuário) o desconhecimento dos obstáculos é grande na comunidade apícola. E esse desconhecimento é terreno fértil para o “comércio” de muitas ilusões. Randy Oliver referia recentemente que após 8 anos de um intenso e rigoroso trabalho de selecção do comportamento de resistência à varroa, selecção que está a fazer ao nível da colónia, tinha apenas 15% das suas colónias resistentes. Tendo partido de uma população com menos de 1% de colónias resistentes, como afirma, a evolução não deixa de ser notável. Contudo não podemos deixar de pensar que o caminho é demorado, que requer muita resiliência e meios financeiros e que está ao alcance de muito poucos fazê-lo.
Haverá um caminho menos demorado? Sim há; a selecção ao nível do indivíduo. A selecção por inseminação instrumental com o sémen de um único zângão é uma delas (ver Harbo, J., The value of single-drone insemination in selective breeding of honey bees). Mas há outras opções mais recentes e que dão provavelmente mais garantias. Não é por acaso que Kaspar Bienefeld, um dos mais notáveis especialistas europeus em genética das abelhas, está a utilizar ovos não fertilizados de obreiras higiénicas e não ovos/larvas de rainhas de colónias higiénicas para acelerar e garantir ganhos mais rápidos na selecção de abelhas resistentes (ver aqui). Contudo esta estratégia, apesar de mais rápida, também tem obstáculos na complexidade dos meios e conhecimentos que envolve.
Chegado aqui interrogo-me: os procedimentos de selecção ao nível da colónia vão ser descontinuados para passarem a ser feitos ao nível do indivíduo? Não quero fazer nenhuma afirmação peremptória sobre um futuro que desconheço, e não quero deixar a ideia de que um procedimento exclui o outro, até porque hoje os sinais que temos são do uso complementar dos dois níveis de selecção, através da selecção sustentada no pedigree (ao nível da colónia) e através da selecção com recurso aos marcadores genéticos (ao nível do indivíduos, ver aqui).
A realidade hoje é que seleccionamos ao nível da colónia pela sua praticabilidade, ainda que os ganhos sejam lentos e sujeitos a avanços e retrocessos. Simultaneamente, alguns de nós, aqueles com recurso a ferramentas e conhecimentos sofisticados, seleccionam ao nível do indivíduo, e assim obtém ganhos mais rápidos e lineares.
Notas: 1) no caso específico do comportamento de resistência à varroa, um dos mais desejados e procurados na comunidade apícola, fiz esta publicação sobre os avanços, retrocessos e pedras que têm surgido no caminho dos últimos 40 anos. 2) admito que o título mais adequado seria este: “da estratégia de selecção ao nível da colónia e da estratégia de selecção ao nível do indivíduo”.
Resposta à questão do título: o sémen dos diversos zângãos com que a rainha acasalou é misturado na espermateca. Por esta razão as larvas escolhidas para translarve, aquelas ali no mesmo quadro e ao lado umas das outras, podem provir de diferentes linhas paternas, umas com os pais “certos” outras com os pais “errados” para aquele comportamento em particular que visamos ter nas futuras colónias. Enquanto essa característica não predominar na população de onde provém as rainhas e os zângãos progenitores, enquanto essa característica for rara, pouco frequente na população, são necessários anos e anos de trabalho de selecção ao nível da colónia. Até este trabalho estar realizado, seleccionar larvas de colónias que gostamos tem algo de semelhante a uma roleta russa, umas dão e outras não. É da natureza das coisas.