porquê é tão difícil criar abelhas melhores? parte 2.

Já estava em dívida com esta publicação há demasiado tempo. Nesta publicação referi: “Existem três bloqueios principais na estrada para manter populações bem controladas – haplodiploidiapoliandria e panmixia – além de algumas outras pequenas complicações.” A poliandria e a panmixia foram aí abordadas. Nesta publicação vou abordar a haplodiploidia, um fenómeno mais complexo de descrever. Vou procurar ser claro e simplificar o mais possível e, ao mesmo tempo, procurar evitar o simplismo e reducionismo.

Os cromossomas, a diploidia e a haploidia

Os cromossomas são as estruturas que contêm os genes de um organismo. As abelhas têm cerca de 15.000 genes. A maioria dos animais normalmente possui dois conjuntos de cromossomas. Um conjunto vem da mãe e outro do pai. São chamados de diplóides. Di significa dois e plóide significa cromossoma. Nas pessoas, temos 46 cromossomas, 23 do óvulo da mãe e 23 do esperma do pai. As abelhas têm um número diferente de cromossomas. As fêmeas, operárias e rainhas têm 32, 16 provêem dos óvulos da rainha e 16 vêm dos espermatozoides dos zângãos. São, por esta razão, diplóides . Como os zângãos nascem de ovos não fertilizados, eles têm apenas os 16 cromossomas que estavam no óvulo. Os zângãos são haplóides porque possuem apenas um conjunto de cromossomas.

Partenogénese

Partenogénese refere-se ao crescimento e desenvolvimento de um embrião sem fertilização. Na sociedade das abelhas ocorre este fato curioso: tanto os óvulos fecundados como os não fecundados podem originar novos indivíduos. As rainhas e as operárias resultam do desenvolvimento de óvulos fecundados, sendo, portanto, diploides.

Os zângãos são haploides, uma vez que resultam do desenvolvimento de óvulos não fecundados. Os zângãos, originando-se de óvulos não fecundados, herdam todos os genes que possuem da “mãe”(rainha), uma vez que não têm “pai”. Geneticamente os zângãos apenas têm avós paternos, isto é, temos de recuar uma geração para encontrarmos a ascendência genética masculina directa. O esquema em baixo é um pouco simplista, mas ilustra este fenómeno de forma clara.

A rainha (Queen), herdou um dos cromossomos de sua mãe (Queen mother) e um do companheiro de sua mãe (Queen father). Os zângãos (drones), podem ser uma cópia de seu avô ou uma metade dos cromossomas de sua avó.

Implicação: Se desejamos escolher os zângãos a selecionar para o nosso programa de alegado melhoramento de abelhas será mais avisado considerar a colónia avó/avô daqueles zângãos. Dito de outra maneira, o valor genético desses zângãos no que respeita, por exemplo, ao comportamento higiénico, observa-se melhor na colónia avó, mais semelhante geneticamente aos zângãos, do que na colónia mãe.

A recombinação genética: os zângãos de uma colónia não são clones da rainha sua mãe

Apesar de os zângãos receberem exclusivamente os seus cromossomas de sua mãe, isto não faz deles um clone (indivíduo geneticamente igual) da mãe. A razão está no processo de recombinação genética que ocorre na produção de gâmetas (espermatozoides e óvulos).

Na recombinação genética ocorrem quebras nos cromossomos e trocas de pedaços entre os seus filamentosEstas quebras podem ocorrer em qualquer ponto do cromossoma e com igual probabilidade. O resultado é que os genes de cada pai podem aparecer no organismo haplóide (o zângão neste caso) de uma forma bastante aleatória. Os ovos, dos quais resultam os zângãos, são resultado da “mistura” aleatória de genes, mistura esta que não é idêntica à mistura genética de sua mãe.

Controlar o lado paterno não acelera necessariamente o processo de melhoramento de rainhas

Dada a natureza haplodiploide dos acasalamentos no mundo das abelhas podemos ser levados a pensar que uma vez que cada rainha obtém apenas 50% do material genético de sua mãe e 100% do material de seu pai, ela será “basicamente” 75% como seu pai. Em consequência, podemos ser levados a pensar que ao controlar a paternidade das rainhas, podemos ver um aumento mais rápido dos traços que desejamos. É melhor não apostar.

Mesmos que através da inseminação instrumental controlemos os outros dois fenómenos que introduzem aleatoriedade no processo de melhoramento, a panmixia e a poliandria, os zângãos doadores de esperma filhos de uma mesma rainha não são gémeos idênticos. Assim como os zângãos não podem ser clones da rainha, cada zângão não é necessariamente idêntico a seus irmãos devido aos eventos de recombinação e segregação genética aleatória que ocorre na produção dos gâmetas. Ainda assim pode pensar-se que as probabilidades de obter uma genética muito semelhante aumentam se trabalharmos com zângãos irmãos enquanto doadores de esperma para o nosso processo de inseminação instrumental. Sim aumentamos, mas em que medida? Sabendo que a intensidade/frequência da recombinação genética nas abelhas é cerca de 100 vezes superior à de muitos outros animais, as garantias de estarmos a trabalhar com “material” genético quase idêntico descem muito.

A possibilidade de estarmos a fazer tudo ao contrário ou a deitar fora ouro

Finalmente os nossos bem intencionados esforços de melhoramento podem ter um final infeliz. A maior parte dos traços que interessam ao apicultor (produtividade, comportamento higiénico, baixa enxameação, prolificidade, frugalidade, mansidão, …) são geneticamente multideterminados. Sabemos que ao seleccionar para dois traços, apenas cerca de 2% das colónias os irão apresentar na população original (tema a desenvolver em breve, espero eu!). Portanto no afã de seleccionar para melhorar isto e aquilo podemos ser tentados a “deitar fora” 98% da variabilidade genética nos nossos apiários. Ora todos estes três mecanismos naturais, panmixia, poliandria e haplodiploidia, foram desenvolvidos pelas abelhas, ao longo de milhões de anos, para aumentar a diversidade genética, não para a restringir. É altura de perguntar se sabemos mesmo o que estamos a fazer e com que consequências no futuro. Outro ponto: a rainha “ranhosa” de uma colónia insatisfatória, pode ter uma genética de ouro. Não nos precipitemos a esmagá-la. Pode, por exemplo, vir a ser uma excelente rainha-mãe de zângãos, e assim que estes acasalem com uma linha em que os seus genes raros e de natureza recessiva, aditiva e epistática, não observáveis até aí, se combinem em boa harmonia com os genes de uma rainha e aquela genética rara e escondida emirja e brilhe, como ouro num campo florido.

Esta publicação foi muito trabalhosa de fazer. Mas se for útil para alguns de nós não caírem no canto de sereia dos marketeers de rainhas ou enxames que da elevada produção à frugalidade, passando por um excelente comportamento higiénico e baixa enxameação, tudo anunciam ter alcançado, controlado e estabilizado, já valeu a pena.

fontes: https://www.perfectbee.com/learn-about-bees/the-science-of-bees/honey-bee-genetics; http://www.glenn-apiaries.com/principles.html; https://pt.wikipedia.org/wiki/Partenogénese; https://www.beesource.com/threads/why-arent-drones-clones.316929/page-2; https://www.educamaisbrasil.com.br/enem/biologia/cromossomos-homologos

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