apicultura darwiniana: análise crítica

Deixo em baixo a tradução/adaptação de um texto que analisa de forma crítica algumas das reivindicações mais frequentemente utilizadas pelo grupo de apicultores que abraçou uma abordagem radical dos pontos de vista expostos por Tom Seeley no artigo de 2017, Darwinian beekeeping: An evolutionary approach to apiculture (American Bee Journal. 157. 277-282).

“Nos últimos anos, algumas formas de apicultura alternativa foram revitalizadas, como a apicultura sem tratamentos (treatment free), biodinâmica e “natural”. Estas práticas ganharam popularidade quando o professor Tom Seeley divulgou as suas experiências e conclusões em 2017 e introduziu o conceito “Apicultura darwiniana”. Seeley argumenta que o conceito de evolução através da seleção natural raramente é usado na apicultura. Segundo ele imitando as condições naturais das abelhas e a seleção natural, podemos levá-las a superar os seus problemas. As soluções surgirão rapidamente se o apicultor estiver sintonizado com esta visão.

No passado, o campo da apicultura “natural” foi inspirado por uma filosofia da new age: “as abelhas superam tudo com o poder da natureza”. Ao longo do caminho, as intervenções de Seeley e outros cientistas, introduziram formas alternativas de apicultura, envolvendo os princípios da biologia evolutiva. Neste texto, explicarei como essa combinação de apicultura alternativa e ciência produziu uma cultura pseudo-darwiniana de práticas extremas. Meu principal problema com a chamada “apicultura darwiniana” é que ela não é verdadeiramente darwiniana. E não quero dizer que não seja radical o suficiente, muito pelo contrário. Este ramo da apicultura usa constantemente o apelo à natureza, criando uma retórica particularmente atraente para os apicultores orgânicos e alguns apicultores de pequena dimensão adeptos da lazy beekeeping (apicultura preguiçosa).

Estes apicultores tentam a apicultura “natural” e sem tratamentos sustentados alegadamente em argumentos darwinianos. Vou desenvolvê-los a seguir. É de realçar que Seeley é bastante cuidadoso nas suas palavras e instruções, mas as suas ideias são distorcidas e usadas de forma excessivamente rígida e radical. Na demanda da “naturalidade”, qualquer método natural de apicultura nunca será natural o suficiente. Surgirá sempre uma forma mais “natural” e “pura”.

Primeira reivindicação: “As abelhas sobreviveram milhões de anos enfrentando doenças e pragas sem intervenção humana. Portanto, têm, ou podem desenvolver, os mecanismos para lidar com a varroa, etc., desde que deixemos a natureza fazer o seu trabalho.”

Na história natural, inúmeras espécies bem adaptadas extinguiram-se por mudanças súbitas no meio. O Varroa destructor mudou o meio subitamente e teria exterminado as abelhas europeias se os humanos não tivessem intervindo.

Segunda reivindicação: a natureza tem o método de seleção natural para eliminar os desajustados e escolher os ajustados. A apicultura natural está mais próxima da seleção natural.

A seleção natural é um processo de eliminação/selecção ao longo de milhares de anos. Na verdade, estes métodos apícolas alegadamente naturais exercem muitas vezes uma pressão de seleção excessivamente rápida, expondo as abelhas ao stresse crónico (parasitário e dietético) e à morte de milhares de milhões de abelhas. O esquecimento destas perdas incontáveis é bem explicado pelo viés da sobrevivência. Além disso, a evolução das espécies envolve três outros mecanismos além da seleção natural: deriva genética, mutação genética e fluxo genético. Não encontramos referências a estes três mecanismos na apicultura darwiniana porque estragam qualquer narrativa credível acerca da sua efectividade.

Terceira reivindicação: Qualquer intervenção ou assistência com substâncias químicas, biológicas ou mesmo naturais retarda a adaptação natural das abelhas contra patógenos e parasitas.

Outro erro fundamental em torno do qual a apicultura sem tratamentos é construída. Pelo contrário, a intervenção dá às abelhas tempo para se adaptarem. Quanto tempo tiveram as primeiras colónias de abelhas europeias quando entram em contato com varroa? Muito pouco… e sucumbiram.

Quarta reivindicação: Através de métodos naturais de apicultura, o ácaro Varroa perde sua natureza agressiva e desenvolve uma relação simbiótica com as abelhas.

O Varroa destructor é um parasita europeu das abelhas melíferas. É improvável que perca essa característica rapidamente, só porque algumas pessoas colocam as abelhas dentro de troncos de árvores e as deixam enxamear todos os anos. Lembrem-se de que os parasitas e predadores permaneceram os mesmos por milhões de anos e não mudam facilmente. Por exemplo, vespas predadoras, esses ancestrais das abelhas, permanecem predadoras.

Quinta reivindicação: As abelhas na natureza escolhem as suas novas rainhas, enquanto nós, com nossas técnicas, as impedimos de escolhê-las.

Esta é uma das reivindicações mais fracas no texto de Seeley. Uma análise meticulosa da enxameação revela que há uma aleatoriedade na criação natural de rainhas. É como se as operárias “optassem por não escolher” suas rainhas, fazendo numerosos cálices que serão utilizados pela rainha de forma aleatória. As operárias simplesmente descartam algumas larvas mal alimentadas, enquanto retêm o elemento aleatório. Surpreendentemente, muitas das técnicas de translarve de rainhas mantêm um elemento análogo de aleatoriedade.”

fonte: https://thebeekeepinglab.com/2023/07/08/pseudo-darwinism-in-beekeeping/?fbclid=IwAR26HCU8BeHf1DAyYguCRS-49_SaEqVIsdlSfJ317AhhXm3v5mPuXJMhD5Q_aem_Ae9BTGDi31rgF_uwnNsrzVInb1J306DJoYO0rkoJz9NA7BszGhVCPk-7dByljzkWzMU

Notas:

1) na minha opinião a publicação “a minha resistência à resistência: o foco no foco” complementa esta adequadamente.

2) Aceitando que esta abordagem darwiniana seja a melhor maneira de lidar com os ácaros varroa, nunca funcionará se não for adoptada por praticamente TODOS os apicultores e ao mesmo tempo, isto para evitar a deriva/diluição genética dos traços que conferem resistência.

3) E se TODOS aderirem ao projecto… como se resolverá a falência da polinização, a escassez de alimentos e os efeitos sociais e económicos decorrentes de mortalidade massiva de 95-99% das colónias de abelhas e isto durante os anos que o efectivo apícola levará a recuperar?

4) Esta experiência com animais sociais, com milhões de milhões de abelhas condenadas ao sofrimento e à morte desnecessária, às mãos de uma ideologia que por uma triste ironia se diz apicentrada e que procura o bem-estar das abelhas, é um paradoxo ético.

5) Ninguém sabe que abelha resultará de um processo de selecção tão esmagador como o desta proposta “vive e deixa morrer”, que conduzirá inevitavelmente a um enorme empobrecimento do pool genético, aspecto que contraria a tendência natural de promoção da diversidade genética das abelhas .

6) Que garantias há que o ácaro varroa não evoluirá também para se adaptar a colónias pequenas, que enxameiem muito e que não são tratadas, como proposto pelos mais acérrimos defensores desta via, a única respeitadora das abelhas na sua opinião.

7) Como percepcionamos deixar de tratar os nossos outros animais domésticos, cães, gatos, …, para que a natureza elimine os indivíduos susceptíveis às doenças e para as quais temos medicamentos?

4 comentários em “apicultura darwiniana: análise crítica”

  1. Muito bom!
    Realmente a sua escrita revela um nível que normalmente não vemos por cá.
    Pragmatismo e uma visão 360º das temáticas e dos problemas.
    Obrigado por desmistificar todos os que apregoam que somente por ser natural é bom e resulta.
    Não, seria bom mas não resulta!
    O ser humano ao longo da sua curta jornada pelo Planeta Terra, voluntária ou involuntariamente provocou alterações para as quais não haverá resposta fácil da natureza. Serão necessárias muitos séculos para que possam ser gerados mudanças harmoniosas, e naturais.
    PS: questiono-o sobre uma ideia que retirei ao me inteirar sobre o comportamento mais defensivo das abelhas que encontramos no Brasil. Aparentemente o comportamento mais agressivo e defensivo torna-as imunes a este ácaro. Poderia ser uma solução? Africanizar as restantes?
    Vejo que esta seleção para a mansidão tem trazido dois grandes predadores, para os quais a abelhas Apis Melífera não consegue lidar sozinha neste momento, Varroa destructor e Vespa Velutina?
    Muito obrigado pela sua enorme sabedoria.
    AP

    1. António Patrício, bem-haja pelas suas palavras que me tocaram no coração!
      Relativamente à questão que me coloca vou dar a resposta numa publicação que irei fazer acerca do tema. Dada a sua importância e pertinência e também pelo facto de o meu blog ser lido por muitos companheiros brasileiros acho que se justifica uma publicação, para lhe dar maior exposição. Um forte abraço!

  2. O ácaro Varroa, foi introduzido de forma nao natural nas abelhas europeias, logo, a partir daí, cai por terra a evoluçao natural das abelhas europeias. Foi a mao do homem que introduziu este parasita na Europa, e as abelhas nao estao preparadas para fazer frente a esse flagelo de modo natural e sem a intervençao do homem. Basta ver que já nao existem abelhas selvagens na natureza. Hoje em dia, por causa da intervençao do homem as abelhas estao em risco de extinçao, mas é também pela mao do homem que podem sobreviver!

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