Em 2014, num apiário próximo de Coimbra, decidi experimentar colocar açúcar branco granulado seco, o vulgar açúcar de mesa, por cima das pranchetas de várias colmeias do modelo Langstroth e Lusitana. Foi uma experiência relativamente informada e induzida pelas leituras que referiam a sua utilização por vários apicultores norte-americanos. Em língua inglesa há diversas menções a este método com o nome Mountain Camp (ver aqui uma publicação de Rusty Burlew acerca: https://www.honeybeesuite.com/mountain-camp-feeding/). Os apicultores que aderiram a esta forma de alimentar as suas colónias no período invernal destacam estas vantagens: a rapidez de utilização, a barateza e a absorção da humidade gerada nas colónias nos dias frios de inverno. No caso por mim experimentado encontrei que uma porção significativa deste açúcar estava derramado no fundo da colmeia, sobre o estrado, e algum espalhado no exterior da colmeia, à frente da mesma. Na altura entendi, mal ou bem, que naquele apiário e naquelas colónias faltou humidade ambiente e humidade interna, esta originada pela respiração das abelhas, para humedecer os cristais de açúcar e facilitar a ingestão dos mesmos pelas abelhas. Neste caso as abelhas trataram os grãos de açúcar como habitualmente tratam outros objectos estranhos de que não gostam colocando-os no exterior da colmeia. Foi esta a conclusão que tirei tentando pensar na minha cabeça o que se terá passado na cabeça das abelhas — tenho cada vez mais a noção que este exercício antropomórfico para tentar compreender as abelhas pode ser extremamente enganador em diversas situações.
Em consequência dos resultados desta experiência, avaliados como negativos por mim, resolvi passar a comprar pasta de açúcar (fondant) para alimentar as minhas colónias no período outono-inverno. Aqui, podem ver o relato mais detalhado e circunstanciado desta prática, num dos anos em que andei próximo de me tornar um “big boy” : ).
Chegado aqui, vou fazer a pergunta de um milhão, que também estará na cabeça daqueles que agora me lêem e dão alguma importância ao que por aqui vou escrevendo: será que alimentar com açúcar de mesa devidamente humedecido (o factor que julgo que foi o limitante na minha experiência) comparado com a alimentação com o fondant é uma melhor opção? Em rigor não sei e tenho dúvidas que alguma vez o venha a saber. Surgem-me desde logo duas grandes dúvidas: 1) será que todo o fondant que se comercializa em Portugal tem o mesmo impacto benéfico na longevidade das abelhas? O IPB e a UTAD fizeram estudos controlados e concluíram que não. Seria importante conhecer a(s) marca(s) que não provocaram uma redução do tempo de vida das mesmas; só estas me interessam; 2) sendo muito consensual que o açúcar branco refinado é um excelente alimento para as abelhas, será que a sua administração em seco, ou mesmo humedecido, em cristais grandes, não terá efeitos não desejados num insecto que tem uma clara preferência por alimentos líquidos?
Em baixo deixo a tradução do sumário de um estudo publicado já este ano, que li pela primeira vez há poucos dias, e que avalia alguns efeitos da alimentação com cristais secos de açúcar. Um debate num dos grupos do FB acerca da alimentação com açúcar de mesa estimulou-me a fazer alguma pesquisa, porque não acho o tema estéril nem bizarro e, sobretudo, continuo curioso acerca do mesmo.
Uma nota à parte: uma vez mais ler ciência deixa-me maravilhado, pela oportunidade que me dá de aprender, entre outras coisas, o significado de palavras novas e identificar novas ramificações da ciência e, sobretudo, a convicção que a melhor ciência se está a fazer nas fronteiras de diversas ciências, com a partilha de intuições esclarecidas/informadas de vários ramos e origens. Saibamos nós, apicultores, replicar esta atitude.
“Os hábitos alimentares dos insetos podem ser influenciados pela abundância de alimentos, nutrição, forças físicas e muitas outras variáveis, por isso este assunto é multidisciplinar e perenemente fascinante. Embora as abelhas se alimentem principalmente de néctar líquido, elas também se podem alimentar de açúcar seco; no entanto, o mecanismo de alimentação para se alimentar de substâncias secas por um inseto que se alimenta principalmente de fluidos permanece inexplorado. Observamos que, quando as abelhas podem aceder tanto ao açúcar seco quanto ao néctar líquido, elas preferem alimentar-se deste último. Para elucidar a preferência alimentar, realizamos um estudo comparativo entre a alimentação com açúcar seco e a extração de néctar líquido, a partir da cinemática e configuração dinâmica da língua*, força de atrito, durabilidade glossal** e eficiência alimentar. Usando uma câmera de alta velocidade, descobrimos que a língua com pêlos da abelha melífera faz movimentos de vaivém para criar sulcos nos pedaços de açúcar seco, e simultaneamente com a saliva vai dissolvendo o açúcar. Verificamos que a frequência de lapidação da língua no açúcar seco se reduz de 4,5 Hz para 1,6 Hz*** quando comparada à alimentação com dieta líquida; isto é uma diminuição de 64% na velocidade média da língua. Por meio de testes tribológicos****, revelamos que as forças de atrito ao alimentar-se de açúcar seco é aproximadamente 5 vezes maior do que a da imersão no néctar, e os pêlos glossais se desgastam 4 vezes mais rápido quando se alimentam de açúcar seco em comparação com a solução de sacarose. Construímos um modelo matemático para preencher a lacuna entre a taxa de ingestão de energia e a dinâmica da língua desses dois modos de alimentação. A taxa teórica de ingestão de energia líquida na alimentação com açúcar seco é 50% menor do que na alimentação com soluções de sacarose. As descobertas experimentais e teóricas revelaram que, embora as abelhas se possam alimentar de substâncias secas, a seleção natural moldou as estruturas da língua principalmente para uma dieta líquida. Este estudo combinou testes comportamentais e mecânicos com modelagem matemática, o que destaca as vantagens do uso de abordagens multidisciplinares para descobrir a fisiologia alimentar de insetos.“
fonte: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/32446764/
*A Cinemática (do grego κινημα, movimento) é o ramo da física que se ocupa da descrição dos movimentos de pontos, corpos ou sistemas de corpos (grupos de objetos), sem se preocupar com a análise de suas causas.
** Glossa pode referir-se a várias coisas: ▪ glossa, uma palavra grega que significa “língua” ou “linguagem”.
*** O hertz (símbolo Hz) é a unidade de medida derivada do SI para frequência, a qual expressa, em termos de ciclos por segundo, a frequência de um evento periódico, oscilações (vibrações) ou rotações por segundo (−1 ou ).
**** Tribologia (do grego τρίβω ‘tribo’ significando ‘esfregar, atritar, friccionar’, e λόγος ‘logos’ significando ‘estudo’) foi definida em 1966 como “a ciência e tecnologia da interação de superfícies em movimento relativo e assuntos e práticas relacionados” (“the science and technology of interacting surfaces in relative motion and of related subjects and practices”).
Muito bom, mais uma vez!!! Na tua opinião, voltavas a alimentar com açúcar seco ou que achas das pastas proteicas que andam por aí no mercado???
Boa tarde, Davide! Não, nestas condições. A voltar a utilizar o açúcar seco granulado terei de o humedecer e colocar num alimentador por cima da prancheta, ou por baixo da prancheta para aproveitar melhor a humidade gerada pela respiração das abelhas, mas neste caso acho que terei de aumentar a altura inferior das ditas pranchetas. Sobre as pastas proteicas comerciais, a minha opinião não é muito positiva por duas ou três razões, e no território onde tenho as minhas colmeias acho que são desnecessárias. Espero ainda este ano fazer uma publicação sobre este assunto e abordá-lo de uma forma mais aprofundada.Um abraço!