avanços científicos no controle de infecções por Nosema ceranae (Microsporidia) em abelhas (Apis mellifera)

Deixo em baixo a tradução de excertos de um artigo, relativamente recente, de revisão da literatura acerca dos avanços científicos no controlo de infecções pelo microsporídio Nosema ceranae.

Introdução: Como gado, as abelhas requerem tratamentos veterinários de apicultores ou agricultores quando infectadas com parasitas ou patógenos. Isolada pela primeira vez em 1949 do fungo Aspergillus fumigatus, a fumagilina tem sido usada para tratar a nosemose induzida por Nosema apis em abelhas melíferas durante décadas. No entanto, estudos recentes mostram que este antibiótico pode ser ineficaz contra infecções por Nosema ceranae. Também há evidências de que a fumagilina é bastante tóxica e causa alterações cromossómicas, carcinogenicidade em humanos e alterações na ultraestrutura das glândulas hipofaríngeas em abelhas. Consequentemente, muitos países fora das Américas (incluindo a União Europeia) baniram a fumagilina para uso agrícola (MRL; Regulamento da Comissão, UE, 2010, nº 37/2010).

Pequenas moléculas: O reaproveitamento de medicamentos para abelhas melíferas usados atualmente pode ser outra estratégia para o controle de N. ceranae. Os ácidos oxálico e fórmico, usados como acaricidas pelos apicultores para suprimir os ácaros varroa (ectoparasitas devastadores das abelhas), inativaram a N. ceranae em testes de laboratório e de campo. […]

A maioria dos tratamentos experimentais do Nosema tem como alvo os esporos no trato digestivo das abelhas, deixando esporos viáveis nas estruturas das colmeias, favos de néctar e fezes, livres para infectar ou reinfectar animais não-tratados ou tratados. Consequentemente, estudos futuros deveriam investigar mais profundamente a dosagem e a sinergia entre os tipos de tratamento que atacam os esporos nos vários estágios da vida. O emparelhamento de tratamentos tópicos geradores de vapores (por exemplo, compressas embebidas em ácido oxálico) com medicamentos orais, por exemplo, pode matar tanto os esporos reprodutores quanto os livres no ambiente da colmeia, ao mesmo tempo que controla os ácaros varroa.

RNA de interferência: A investigação de RNAi pode ser útil na descoberta de novos alvos e tratamentos para infecções por N. ceranae em abelhas. O RNAi é um mecanismo de silenciamento genético pós-transcricional que é conduzido pela ligação do RNA de cadeia dupla (dsRNA) a sequências transcritas homólogas de um gene alvo. Além disso, o RNAi é um mecanismo anti-infeccioso natural presente na resposta imunitária das abelhas. O RNAi está a ser investigado para atividade terapeutica na medicina humana e para pesticidas na agricultura. A inibição de ácaros varroa e vários vírus com RNA infecciosos para as abelhas já foi realizada por RNAi. […] Embora muitas aplicações de RNAi tenham sido exaustivamente pesquisadas, nenhum medicamento ou pesticida baseado em RNAi foi aprovado até agora para uso agrícola.

Extratos e suplementos naturais: Dados preliminares sugerem que um suplemento fitofarmacológico comercial, Nozevit®, pode melhorar a saúde das abelhas diminuindo a carga de esporos nas colónias. Mais investigações e um tamanho maior de amostra são necessários para confirmar esses resultados, já que van den Heever et al. relataram haver nenhum efeito de Nozevit® em ensaios com abelhas em laboratório. Uma pesquisa de 2 anos com o suplemento à base de algas marinhas HiveAlive ™ relatou uma diminuição nas cargas de esporos da colónia e um aumento da população da colmeia em relação aos controles após a administração de dois tratamentos semestrais. Surpreendentemente, a sobrevivência não foi comentada neste estudo, embora os autores levem em conta a mortalidade da colónia nas suas análises do desenvolvimento da colónia.

Embora certos extratos naturais e suplementos comerciais tenham demonstrado eficácia contra N. ceranae, existem outros suplementos de produtos naturais anunciados como anti-infecciosos que não têm nenhum efeito benéfico nas abelhas infectadas com N. ceranae. Nosestat® e Vitafeed Gold® foram avaliados num teste de campo e não tiveram impacto na produtividade da colónia e nos níveis de esporos de Nosema. ApiHerb® e Nonosz® também são vendidos para melhorar a saúde das abelhas e talvez tratar a nosemose, mas pesquisas adicionais e mais evidências científicas são necessárias para apoiar as alegações de eficácia. Evidentemente, os apicultores devem ser cautelosos sobre que suplementos e extratos selecionam para o tratamento de infecções por N. ceranae.

Suplementos microbianos: A administração de suplementos microbianos pode ter impactos positivos na saúde das abelhas e prejudicar a viabilidade de N. ceranae. Baffoni et al. sugerem que a suplementação da dieta das abelhas com estirpes de bifidobactérias e lactobacilos, que segregam metabólitos de antibióticos, diminui os níveis de esporos de N. ceranae. Este trabalho soma-se a estudos anteriores que indicam que os ácidos orgânicos e outros metabólitos (por exemplo, surfactina) produzidos por bactérias reduzem a mortalidade das abelhas e as cargas de N. ceranae quando adicionados aos alimentos de abelhas. Foi demonstrado que outras estirpes bacterianas e probióticos (Parasaccharibacter apium, Bacillus sp., Bactocell® e Levucell SB) melhoram a sobrevivência de abelhas infectadas, mas não diminuem a carga de esporos. Um tratamento anti-Nosema bem-sucedido deve melhorar a saúde das abelhas e diminuir os níveis de infecção. Contudo probióticos, prebióticos e substitutos do pólen mal selecionados podem realmente exacerbar as infecções e aumentar a mortalidade das abelhas.

fonte: https://www.frontiersin.org/articles/10.3389/fvets.2019.00079/full

Nota: da minha realidade, não tenho tido problemas com nosemose nas minhas colónias, tanto quanto consigo observar. Nos últimos 6 anos, desde que afinei a minha estratégia de controlo da varroose, a taxa de mortalidade invernal não tem ultrapassado os 5%. Na verdade também não utilizo “Probióticos, prebióticos e substitutos do pólen mal selecionados [que] podem realmente exacerbar as infecções e aumentar a mortalidade das abelhas.”, e não faço colecta de pólen.

um território de marcavala

A marcavala.

É num território de marcavala, cheio de promessas, que estou a re-activar o meu quarto apiário. Foi neste local que tudo se iniciou para mim na apicultura e onde regresso sempre, mais ou menos por esta altura do ano.

Com as marcavalas (Echium lusitanicum) a iniciar a floração, só faltavam as abelhas para completar o trinómio território-abelhas-apicultor.

Agora já por ali andam.
Muitas centenas de milhar de abelhas se lhes juntarão nas próximas semanas.
Os enxames prometem, o território também e o apicultor tem ilusão!

Hoje, a parte da manhã passei-a colocar as primeiras meias-alças sobre uma série de ninhos chegados recentemente ao território da marcavala.

Se as abelhas se querem saudáveis, o apicultor será o seu cuidador, já o território, esse, quer-se abundante.

Nada existe isoladamente, tudo se interliga e complementa e, neste jogo vital de interdependências, os ciclos sucedem-se.

as abelhas sentem dor e sofrem? e sobre um resgate…

Os resultados experimentais que conheço acerca da resposta à questão se as abelhas melíferas sentem dor e sofrimento não são convergentes; uns indiciam que sim outros indiciam que não.

Por exemplo, os investigadores têm seguido várias linhas de investigação como: 1) reações motoras protetoras como indicadores de dor; 2) aprendizagem de evitamento.

As reações motoras de proteção incluem coisas como limpeza intensa e prolongada de regiões do corpo que foram feridas. Não há evidências de que as abelhas façam isso.

No entanto, há evidências de que as abelhas aprendem respostas de evitamento. Este traço comportamental advém da aprendizagem de uma resposta de evitamento a um estímulo prejudicial que lhes pode causar ferimentos.

Se uma forrageadora é atacada por um predador numa fonte de alimento (e sobrevive), ela impede outras abelhas de dançar a anunciar essa fonte de alimento quando retorna à colmeia.

Embora a aprendizagem de evitamento não indique que as abelhas sentem dor, ele implica um processamento central em vez de uma simples resposta nociceptiva*. Mostra que as abelhas são capazes de comparar o risco versus a recompensa de algo bom (uma rica fonte de néctar) com algo ruim (a chance de serem comidas ao coletar o néctar). Esse tipo de tomada de decisão demonstra uma capacidade cognitiva que pode tornar mais provável a experiência de dor.

fonte: https://www.theapiarist.org/do-bees-feel-pain/

Estando a questão em aberto, não deixa de me chocar o sofrimento que certas práticas apícolas de grande ingenuidade poderão estar a provocar nas abelhas, quando são abandonadas à sua sorte frente ao varroa e vírus por eles veiculados, numa tentativa vã de promover abelhas resistentes num curto período de tempo.

Neste assunto, como noutros, partilho a opinião de Rusty Burlew: “Na minha opinião, comprar animais que precisam de cuidados e, em seguida, negar-lhes esses cuidados é mau-trato de animais. Eu acredito que é ética e moralmente errado assistir algo morrer só porque você quer se chamar de “treatment free” (apicultor que deliberadamente não utiliza tratamentos contra a varroose), e acho que algumas pessoas estão mais interessadas em usar o rótulo do que em ter sucesso. “Treatment free” não é uma medalha de honra se tudo ao seu redor morre.

fonte: https://www.honeybeesuite.com/so-you-want-to-be-treatment-free/

Friedrich Nietzsche, poeta e filósofo (1844–1900).

Sobre o impacto do sofrimento dos animais em nós o caso mais notável que conheço, pela sua radicalidade, é o de Friedrich Nietzsche, de quem os seus biógrafos dizem ter enlouquecido a 3 de janeiro de 1889, quando presenciou o açoitamento de um cavalo na Praça Carlos Alberto. Nietzsche terá corrido em direção ao cavalo, abraçado o pescoço do animal para o proteger e, de seguida, caiu ao chão num pranto intenso. Talvez, naquele momento eterno, Nietzsche tenha vislumbrado os segredos mais preciosos e belos do universo no olhar de um cavalo sofrido, como Blake os intuiu num grão de areia, e Borges nas listras irregulares de um tigre.

No outro pólo da esfera, na minha realidade, muitas vezes a beleza de um enxame me resgatou da dor e sofrimento e me restituiu um sentimento de suave bem-estar. Este poder dos enxames, tenho-o observado desde que me tornei apicultor e, mais frequente e intensamente, desde que me re-equilibrei com a redução do efectivo, me tornei um amador—profissional, e apaixonei!

*Nocicepção ou algesia é o termo médico para a recepção de estímulos aversivos, transmissão, modulação e percepção de estímulos agressivos. Receptores de danos são chamados de nocireceptores e os estímulos são transmitido pelo sistema nervoso periférico até ao sistema nervoso central onde é interpretado como dor.

transitando: do modo de enxameação para o modo de produção

No dia de ontem transitei entre os 4 apiários que tenho activos neste momento — na terça-feira re-activei o quarto.

Vista parcial do quarto apiário.

E com este transito procuro acompanhar a transição entre o modo de enxameação reprodutiva, a terminar no território, e o modo de produção.

Para ilustrar a gestão que faço nesta época de transição, nada melhor que mostrar o que faço actualmente com colónias que me serviram para realizar desdobramentos pela técnica Doolittle — durante o período da enxameação reprodutiva.

Hoje a maioria dessas colónias permanece com a configuração ninho, excluidora de rainhas e sobreninho — com boa parte delas com uma meia-alça sobre o sobreninho.

Configuração actual das colónias que foram utilizadas para os desdobramentos pela técnica Doolittle.

A gestão da transição nestas colónias passa por um maneio simples: nos sobreninhos, onde antes colocava quadros com criação retirados do ninho da própria e/ou de outras colónias, coloco agora e de forma gradual quadros com cera laminada, que estão a ser puxados para as abelhas aí armazenarem o néctar recolhido.

Quadro colocado recentemente no sobreninho, já semi-puxado e parcialmente preenchido com o néctar recolhido nestes dias.

E assim vou fazendo a minha apicultura, transitando ao ritmo das abelhas. E sinto-me bem a acompanhar este transito e este ritmo. As abelhas recentram-me como ser natural, impelindo-me e lembrando-me que tudo nelas é feito em ciclos de desenvolvimento anuais: primeiro há que fazer a prevenção e o controlo da enxameação, para depois, e só depois, pensar em orientar as colónias para o armazenamento de néctar e mel para crestar — no caso concreto destas colónias o armazém do néctar/mel tem a dimensão de um sobreninho. As abelhas — as minhas ao menos —antes de pensarem em armazenar para o inverno pensam em reproduzir-se. Levei anos para compreender, aceitar e, sobretudo, encontrar soluções para integrar este facto natural na abordagem global de maneio das minhas colónias de abelhas!

a transmissão do conhecimento tácito e o encontro de gerações

As organizações procuram com as ferramentas de “gestão do conhecimento”, que os seus empregados mais experientes de saída da empresa, por reforma ou mudança para outro local de trabalho, por exemplo, capturar o conhecimento tácito destes para o transmitir aos mais novos. Entre outras medidas, como o recurso a entrevistas, gravações do desempenho no terreno, umas das mais utilizadas passa por colocar o aprendiz ao lado do seu colega mais experiente acompanhando-o no desempenho da suas funções. Esta experiência visa dar oportunidade a que um conjunto de detalhes do modo de fazer, do momento de o fazer e do contexto em que os fazer, não escritos e capturados nos manuais dos descritivos de funções e de procedimentos, sejam apreendidos pela observação “natural”, em local, pelo aprendiz.

Vem isto a propósito da mais recente visita do meu amigo Marcelo Murta, que me acompanhou e ajudou na realização de diversas operações de maneio em dois dos meus apiários. Tendo o Marcelo lido boa parte do que escrevo no blog, o local onde verto o meu conhecimento explícito, achei por bem que viesse ver como trabalho, para que pudesse aceder a uma parcela do conhecimento tácito que uso no maneio das colónias e das diversas componentes que o envolvem.

O Marcelo Murta à minha esquerda.

Para terminar o Marcelo, que tem idade para ser meu filho, também partilhou comigo os seus conhecimentos, opiniões e sugestões. Julgo que tal se originou na boa relação que temos os dois, por não o oprimir com as minhas opções e narrativas, por me manter disponível e receptivo aos seus contributos e saberes.

O encontro de gerações não sendo uma impossibilidade metafísica, exige uma escuta atenta, uma apreciação justa, uma atitude equilibrada de ambas as partes. Relevam-se os pontos comuns e analisam-se tranquilamente as divergências. Assim se estabelece uma relação serena e produtiva.

Que a diferença de idades seja um motivo para as diferentes gerações erguerem pontes, não muros. Que o conhecimento tácito flua como o néctar flui entre as plantas e as abelhas…

sobre o estado de humor de uma colónia de abelhas

A preservação do estado normal de uma colónia de abelhas depende, na sua base, de três condições necessárias: uma abelha-mãe no desempenho regular das suas funções; abelhas adultas, de várias faixas etárias preferencialmente, e alimento, sendo este mel/néctar, pólen/pão de abelha e água. Uma das manifestações deste estado de normalidade, na época que atravessamos, é a presença de ovos. Estou absolutamente convencido que a normalidade vs. anormalidade de uma colónia tem expressão no estado de humor da mesma.

Ovos, ou a natureza re-iniciando-se…

Neste momento, se abro uma colónia e as abelhas presentes na meia-alça permanecem ocupadas nos seus labores, em boa medida indiferentes à invasão do seu espaço, considero que tudo lhes deve estar a correr de feição e de forma prazerosa. Se abro um ninho e encontro as abelhas muitíssimo calmas, se poucas ou nenhumas levantam voo, à la buckfast, vou logo ver se têm mestreiros de enxameação. Se, pelo contrário, as encontro demasiado deslaçadas, desorganizadas, defensivas, irritadas e indecisas vou verificar se estão órfãs. Se as encontro lentas, sem energia e deprimidas tenho de ver o estado de saúde da sua criação.

Toda a natureza comunica o seu estado de humor, e as abelhas não são excepção. Até porque acredito que a ausência de um estado de humor é uma impossibilidade no mundo dos seres vivos mais inteligentes e que funcionam em rede, das árvores, às abelhas (por que razão não fui capaz de terminar no homem, fica para mim!). Basicamente esse estado é a expressão do balanço entre as forças e as fragilidades, entre a nutrição e a privação, entre a saúde e a doença, entre o bem-estar e o mal-estar, entre o amor e a sua ausência, que cada ser vivo vivencia.

Sejamos nós, apicultores, observadores atentos dos estados de humor das nossas colónias de abelhas, e saibamos descodificar correctamente alguns dos mais elementares. Até porque alguns são-nos ainda indecifráveis, como indecifrável é, por vezes, o coração de uma mulher.

Nota: aproveitem a caixa de comentários, quem o desejar, para aí descrever outros estados de humor que encontra nas vossas colónias.

com borges e calvino

Referi na primeira publicação que este blog surge, entre outras, pela razão do meu prazer pela escrita. E este prazer está associado a um enamoramento, o enamoramento pela literatura.

E ao escrever, mesmo num blog de apicultura eminentemente técnico, aqui e ali não podemos deixar de expressar, desejando até expressar, procurando até expressar, um certo traço de escrita presente nos autores que tanto amamos ler.

Borges e Calvino

Os dois excertos em baixo, cuja escolha não é despropositada, como se fosse possível fazer escolhas despropositadas, são de Jorge Luís Borges, um velho companheiro desde os meus 16 anos, e de Italo Calvino, um escritor que conhecendo como se conhecem os vizinhos numa cidade, só muito recentemente lhe abri a soleira da minha porta, bebi um copo com ele, e desde essa altura se tornou um companheiro para a/da vida.

Que os mundos maravilhosos das abelhas e da literatura nos continuem a encantar.

OS DOIS REIS E OS DOIS LABIRINTOS (1), de Jorge Luís Borges

Contam os homens dignos de fé (porém Alá sabe mais) que nos primeiros dias houve um rei das ilhas da Babilônia que reuniu arquitetos e magos e ordenou-lhes a construção de labirinto tão surpreendente e sutil que os varões mais prudentes não se aventuravam a entrar, e os que entravam se perdiam. Essa obra era um escândalo, pois a confusão e a maravilha são operações próprias de Deus e não dos homens. Com o correr do tempo, veio a sua corte um rei dos árabes, e o rei da Babilônia (para zombar da simplicidade de seu hóspede) fez com que ele penetrasse no labirinto, onde vagueou humilhado e confuso até o fim da tarde. Implorou então o socorro divino e deu com a porta. Seus lábios não proferiram queixa nenhuma, mas disse ao rei da Babilônia que ele tinha na Arábia outro labirinto e, se Deus quisesse, lho daria a conhecer algum dia. Depois regressou à Arábia, juntou seus capitães e alcaides e arrasou os reinos da Babilônia com tão venturosa sorte que derrubou seus castelos, dizimou sua gente e fez prisioneiro o próprio rei. Amarrou-o sobre um camelo veloz e levou-o para o deserto. Cavalgaram três dias, e lhe disse: “Oh, rei do tempo e substância e símbolo do século, na Babilônia, quiseste que me perdesse num labirinto de bronze com muitas escadas, portas e muros; agora o Poderoso achou por bem que eu te mostre o meu, onde não há escadas a subir, nem portas a forçar, nem cansativas galerias a percorrer, nem muros que te vedem os passos”.

Em seguida, desatou-lhes as amarras e o abandonou no meio do deserto, onde morreu de fome e de sede. A glória esteja com Aquele que não morre.

(1) Esta é a história que o reitor comentou do púlpito. Ver em Abenjacan, o Bokari, morto no seu labirinto.

AS CIDADES E O DESEJO, de Italo Calvino

A três dias de distância, caminhando em direção ao sul, encontra-se Anastácia, cidade banhada por canais concêntricos e sobrevoada por pipas. Eu deveria enumerar as mercadorias que aqui se compram a preços vantajosos: ágata ônix crisópraso e outras variedades de calcedônia; deveria louvar a carne do faisão dourado que aqui se cozinha na lenha seca da cerejeira e se salpica com muito orégano; falar das mulheres que vi tomar banho no tanque de um jardim e que às vezes convidam — diz- -se — o viajante a despir-se com elas e persegui-las dentro da água. Mas com essas notícias não falaria da verdadeira essência da cidade: porque, enquanto a descrição de Anastácia desperta uma série de desejos que deverão ser reprimidos, quem se encontra uma manhã no centro de Anastácia será circundado por desejos que se despertam simultaneamente. A cidade aparece como um todo no qual nenhum desejo é desperdiçado e do qual você faz parte, e, uma vez que aqui se goza tudo o que não se goza em outros lugares, não resta nada além de residir nesse desejo e se satisfazer. Anastácia, cidade enganosa, tem um poder, que às vezes se diz maligno e outras vezes benigno: se você trabalha oito horas por dia como minerador de ágatas ônix crisóprasos, a fadiga que dá forma aos seus desejos toma dos desejos a sua forma, e você acha que está se divertindo em Anastácia quando não passa de seu escravo.

Os dois reis e os dois labirintos, in O Aleph; As cidades e o desejo, in As cidades invisíveis

projectistas de parques solares e polinizadores: a simbiose

O Miguel Marques chamou-me a atenção para dois artigos de divulgação científica em torno da conjugação simbiótica entre a instalação de parques solares, a implementação de sementeiras/ plantações biodiversas com espécies vegetais nativas, e o efeito benéfico sobre os insectos polinizadores. Os resultados são de duas investigações, uma levada a cabo nos EUA e outra no RU. Fiz a tradução de alguns excertos com a divulgação dos dados recolhidos pelos investigadores norte-americanos.

“Pesquisadores nos Estados Unidos constataram que o sombreamento parcial fornecido pelos parques solares cria um microclima que favorece o crescimento mais diverso e abundante de flores e polinizadores. Eles também descobriram que o sombreamento parcial aumenta a abundância da floração ao atrasar o seu desenvolvimento, aumentando a forragem para polinizadores durante o final da estação quente e seca.

Os insetos polinizadores visitam as flores, mesmo que estas cresçam sob os painéis de um parque solar, e a sombra dos módulos também é benéfica ao atrasar o período de floração, o que, por sua vez, tem um efeito positivo na abundância e diversidade dos polinizadores.

Esta é a principal conclusão do estudo “O sombreamento parcial por painéis solares retarda o florescimento, aumenta a abundância floral durante o final da estação para polinizadores num ecossistema agrivoltaico de sequeiro”, publicado recentemente em relatórios científicos, nos quais cientistas da Universidade Estadual de Oregon nos EUA investigaram se o acoplamento de PV ao habitat para polinizadores selvagens pode ajudar a aumentar a biodiversidade.

“Alguns estados, como Minnesota, Carolina do Norte, Maryland, Vermont e Virgínia, desenvolveram diretrizes e incentivos estaduais para promover instalações solares com foco em polinizadores”, afirmam os cientistas. “Nesta prática, a forragem para polinizadores é estabelecida como o sub-bosque do painel solar, em vez da grama tradicional ou cascalho.”

fontes: https://www.pv-magazine.com/2021/04/20/pollinator-focused-solar-parks/

o controlo da enxameação ou apaixonado como um adolescente

Tenho utilizado pontualmente a técnica Demaree. Este ano, e até à data, utilizei-a em três colónias. Por mero acaso, neste conjunto de três casos acompanho neste blog o caso onde se revelou mais complicado e difícil fazer o controlo do impulso reprodutivo. Enquanto nos outros dois casos não observei a produção de mestreiros no ninho após a aplicação da técnica, este caso não seguiu exactamente esse curso como aqui descrevi.

A colónia. A descrição do caso começou aqui.

Ontem foi dia de voltar ao apiário realizar diversas tarefas, como a verificação de postura em núcleos onde introduzi virgens a 12 de abril. Em mais de 50% dos casos só ontem vi os primeiros ovos (tema para uma futura publicação).

Passados quase já 30 dias sobre o início da aplicação da técnica voltei a inspeccionar a colónia do caso em análise. Primeiro ponto a realçar: não vi mestreiros de enxameação, de substituição ou de emergência nesta colónia — aparentemente a colónia entrou em modo de produção e deixou para trás o modo de enxameação.

Quadro do sobreninho, onde se observa os primeiros apontamentos do aromático néctar da Erica arborea — não da Erica lusitanica, como erradamente assumi numa publicação anterior (obrigado Filipa!). Neste território, e pela frente, ainda tenho fluxo de várias origens durante cerca de mais 6 a 8 semanas.

Segundo ponto a realçar: se no sobreninho as coisas estão a começar a acontecer, no ninho o conjunto das três fotos em baixo falam por si e dispensam-me o texto…

Quadro na posição 6.
Quadro na posição 7.
Quadro na posição 8.

Terceiro ponto a realçar: se bem me lembro no passado dia 12 de abril, transferi para o sobreninho uns 7 ou 8 quadros com criação. De lá para cá já retirei do ninho desta colónia 3 quadros com criação. No total esta colónia doou cerca de 50 mil abelhas a outras colónias — as contas são, 10 quadros cada com cerca de 5 mil abelhas para emergir. Este número de abelhas doadas enchem duas caixas Langstroth de uma ponta à outra mais uma meia-alça. Estando eu expectante que esta colónia produza até ao final da época cerca de 30-40 kgs de mel, tomara eu que todas as minhas colónias tivessem este nível de desempenho e me dessem este rendimento. Que tenho para dizer a concluir? Menos colmeias não significa necessariamente menos produção e menos rendimento. E agora é aqui que me encontro, depois de quase ter abandonado a apicultura, como um adolescente, apaixonado de novo — “Não adianta represar um rio, mais tarde ou mais cedo ele volta ao seu percurso original“.

a apicultura enquanto arte

Talvez por estar no ramo, encontro na apicultura uma dimensão artística que me passa despercebida noutros ramos da agro-pecuária. Que me perdoem alguns se estiver a ser injusto e precipitado, mas fazer a apicultura é diferente de semear batatas. Uma alma poética poderá vir a ser apicultor, dificilmente será um produtor de batatas. Ninguém é melhor que ninguém, apenas são diferentes as suas naturezas.

A apicultura enquanto expressão de beleza.

Enquanto homem que vive a sua vida em várias dimensões, os leitores mais atentos já terão dado conta da minha especial preferência por uma forma de arte: a música. Sempre me acompanhou, desde que me lembro.

Era ainda um jovem e fundei uma empresa promotora de concertos. Juntamente com a minha mulher e o meu amigo Gonçalo Barros fundámos a NAO — Novas Audições Objectivas — que trouxe a Portugal (Coimbra, Lisboa, Porto, Almada e Montemor-o-Velho) bandas estrangeiras acompanhadas frequentemente de bandas nacionais na primeira parte. Talvez entre os leitores deste blog se encontre alguém que tenha visto algum concerto promovido pela NAO — o mundo é pequeno, não é?

Sejam poetas sendo apicultores!